Uma nota da pró-reitoria de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) acentuou a sensação de incerteza da comunidade científica em relação ao futuro das pesquisas no Brasil. No documento, enviado anteontem ao corpo docente da instituição, a UFRJ informava que as bolsas financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) seriam suspensas a partir de setembro. De acordo com a pró-reitora, Leila Rodrigues da Silva, a UFRJ recebeu, por telefone, um comunicado do órgão, afirmando que se não houver descontingenciamento de verba será impossível financiar o benefício.
No mesmo dia, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, se reuniu com o presidente do CNPq, Mario Neto Borges, para discutir soluções para os problemas financeiros do órgão. Apesar do encontro e da negativa do Ministério sobre o cancelamento das bolsas, permanece o clima de insegurança e indignação.
Em entrevista ao GLOBO, o presidente do CNPq confirmou que não há garantia da manutenção, até o fim do ano, das 100 mil bolsas ofertadas pelo órgão a estudantes e pesquisadores. Ainda assim, Borges diz que está otimista a respeito da liberação dos recursos necessários para cumprir os compromissos. Segundo ele, o ministro Kassab, com quem se reuniu novamente ontem, afirmou que o CNPq tem prioridade na área e não deverá ter suas atividades interrompidas. De acordo com Borges, Kassab não pôde garantir o repasse dos recursos necessários até o fim do ano porque ainda precisa negociar com a área econômica do governo o descontingenciamento do orçamento da pasta.
Em março passado, o governo federal anunciou um corte de 44% nos valores previstos para 2017 do MCTIC, o que se traduziu em uma redução de R$ 572 milhões nos repasses de R$ 1,3 bilhão esperados pelo CNPq.
— O contexto nacional não é fácil, mas conseguimos assegurar pelo menos a próxima leva de compromissos de setembro, relativos a agosto. Mas a partir daí vai ser matar um leão por mês. O CNPq vive seu pior momento em 66 anos de história. Como não fizemos este corte no nosso orçamento mês a mês, chegamos ao limite dos nossos recursos agora — explicou.
RETROCESO DE ATÉ 20 ANOS
Na UFRJ, o CNPq é responsável pelo financiamento de 3.596 bolsas em 24 modalidades diferentes,o que inclui benefícios destinados à graduação, como bolsas de iniciação científica, até recursos para mestrado, doutorado, e financiamento de pesquisadores sêniors.
— É um sentimento de indignação plena. É impossível pensar que haja tamanha irresponsabilidade em relação à pesquisa nesse país. Caso isso se confirme, significará o fechamento de laboratórios e descontinuidade de estudos, o que resultaria em uma perda de 10 a 20 anos em termos de pesquisa — critica a pró-reitora da UFRJ. — Vivemos um período de corte orçamentário que já repercute negativamente. Alguns laboratórios estão na iminência de fechar. São pesquisas extremamente importantes para sociedade.
Na nota divulgada, a UFRJ afirma que “há um projeto político em curso, que se concretiza em um ataque e desmonte da Ciência e da universidade pública no Brasil, que acarretará prejuízos inestimáveis para toda a sociedade”. O professor Romildo Filho, pesquisador 1A do CNPq — que compõe a elite dos cientistas financiados pelo órgão —, conta que a escassez de recursos já vem dando sinais há tempos. Uma de suas pesquisas, aprovada em um edital de 2016, só começou a receber recursos neste ano e, ainda assim, com o repasse de pequeno montante. O pesquisador atua no desenvolvimento de materiais sustentáveis e aproveitamento de resíduos.
— Tivemos uma pesquisa na ordem de R$ 120 mil aprovada em 2016 e começamos a receber um ano depois, uma parcela de R$ 6 mil. Como produzir pesquisa sem dinheiro? Além do fomento ao pesquisador, que é o que mantém o grupo funcionando, o corte de todas as outras bolsas tira de muitos alunos a condição de pagar suas despesas diárias — afirma o cientista, que coordena o Laboratório de Estruturas e Materiais da Coppe/UFRJ e é vice-presidente da instituição.
Caso aconteça, o corte atingirá não só a área de engenharia e ciências, mas também as pesquisas na área de humanidades. Raphael Toledo, aluno do 4º período de Ciências Sociais da UFRJ e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), conta que a hipótese de corte de bolsas foi uma surpresa desagradável. Há um ano ele desenvolve um projeto sobre cooperação internacional com povos indígenas.
— É meio frustrante. Estou no final da pesquisa, passei as férias todas me dedicando a ela e agora acontece isso. É um descaso— lamenta o jovem, que recebe uma bolsa de R$ 400.
Presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich diz que a situação da ciência no país é uma “morte anunciada”. Ele rebate ainda o argumento do governo de contingenciar os recursos alegando crise econômica:
— O MCTIC tem atualmente 25% do orçamento que tinha em 2010. Isso mostra que a situação é a crônica de uma morte anunciada. Era óbvio que a ciência brasileira não ia sobrevier até o fim do ano. Recentemente o governo liberou dinheiro para emendas parlamentares na ordem de bilhões. Vemos que o dinheiro existe, a questão é definir as prioridades.
Para o ano que vem, o presidente do CNPq diz que o órgão vai enfrentar “outra luta”, pois o texto prévio do orçamento a ser votado pelo Congresso Nacional traz mais restrições para a área de ciência e tecnologia. De acordo com ele, a prioridade será manter os valores originais previstos para 2016, que acrescidos da inflação chegariam a R$ 1,4 bilhão, além de obter o repasse de R$ 500 milhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que serve como um complemento ao seu orçamento e ao qual algumas das áreas de atuação do órgão estão vinculadas legalmente. Ele admitiu que este ano, porém, o CNPq só conseguiu receber R$ 62 milhões dos R$ 400 milhões previstos do fundo, também alvo de contingenciamento pelo governo federal. E o total não inclui R$ 20 milhões do FNDCT que estavam “marcados” para os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia em 2017.
Fonte: Jornal O Globo